
Praças e áreas verdes: espaços que precisam deixar de ser “de ninguém” e pertencer às pessoas
Dona Essy se aproxima do grupo que acaba de organizar uma reunião ali na praça vizinha da casa onde ela mora desde 1978. Começa a reclamar, dando uma espécie de bronca e deixando aquelas pessoas meio assustadas. Até elas perceberem que é apenas uma brincadeira. Essy tem 89 anos e um bom humor que, como costuma ocorrer com o vinho, melhorou com o tempo. Conta ao grupo sobre a origem de seu nome, inspirado no primeiro “sabão de cheiro” a que a família teve acesso, nos idos dos anos 20 do século passado. Foi quando, em sua localidade na região da Estrada de Ferro, onde morava, chegaram algumas novidades vindas de Araguari, no Triângulo Mineiro. O pai retirou a letra G inicial daquele item de higiene e batizou a menina com o que restou do nome próprio.
O grupo interage com a senhora e lhe explica o porquê daquele ajuntamento estranho, debaixo de uma tenda na saída de um portãozinho, no final da manhã de uma terça-feira. Tinha acabado de ocorrer ali, no Coletivo Centopeia, na Praça Wilton Valente Chaves — também conhecida como Praça Cora Coralina —, o lançamento do projeto Casa Fora de Casa, uma ideia-realização do estúdio Sobreurbana, e que vai afetar diretamente a vida de dona Essy.
É a primeira iniciativa a partir de uma entidade organizada em prol de algo que foi fundamental no planejamento urbanístico original de Goiânia: as praças de convivência. O alvo da primeira fase do projeto, prevista para ocorrer de julho a setembro, serão quatro áreas no Setor Sul: a Praça Maria Angélica, conhecida como Praça do Bacião, onde há uma riqueza de trabalhos de artistas de rua, especialmente grafites; Praça Fleury Curado, uma das mais bem cuidadas do bairro e cujo uso respeita o projeto original; Praça do Martim Cererê, ponto de prática de skate, próximo a equipamentos culturais, mas que convive com o problema de drogas; e a Praça Cora Coralina, que foi descaracterizada ao ser dividida em duas para a passagem da Avenida Cora Coralina. A praça de dona Essy.
O projeto utilizará conceitos do urbanismo tático (adoção de práticas de baixo custo e ágeis de intervenção, com trabalho voluntário), do placemaking (opção por construir “lugares” — com a participação da comunidade —, em vez de simplesmente “espaços”) e do design thinking (pessoas como base para encontrar e adaptar soluções de um projeto em relação a determinado contexto). A intenção é fazer com que cada praça seja recuperada para o uso da melhor forma, adequada aos anseios de quem efetivamente frequentá-la.

Foto panorâmica da Praça Wilton Valente Chaves, por onde se iniciará o projeto Casa Fora de Casa: área foi desvirtuada com passagem de avenida e hoje se transformou em estacionamento | Foto: Elder Dias
Encabeçado pela arquiteta e urbanista Carol Farias e pelo comunicador André Gonçalves e apoiado por estruturas das administrações municipal e estadual, bem como pelo Coletivo Centopeia, referência em economia criativa, o Casa Fora de Casa traz uma ideia que é animadora, embora trabalhosa: envolver a comunidade para cuidar do equipamento público destinado a ela mesma, criando ou revigorando o sentido de pertencimento aquele espaço. Tornar o ambiente algo parte do patrimônio pessoal de cada cidadão que por ele passa ou permanece é um dos desafios mais apaixonantes dessa visão de urbanismo.
Talvez seja isso o que falte aos goianienses em geral, embora não a todos. O fato é que são ainda poucos os que gritam contra a perda do patrimônio arquitetônico e cultural da cidade. Isso envolve desde situações definitivas, como a demolição de casarões de famílias pioneiras, até o desvirtuamento de praças, como o que ocorre de forma direta ou indireta no Setor Sul. Talvez por achar que Goiânia seja muito jovem para se preocupar com a própria memória. Com sua pedra fundamental lançada em 1933, Goiânia é mais nova do que dona Essy.Planejada a partir de conceitos considerados os mais modernos para a época, a cidade tem visto sua breve história arquitetônica e paisagística evaporar. O brasileiro já não é tido como um povo que tenha grande respeito por “questiúnculas” dessa natureza. O goiano não é melhor do que a média nesse sentido, muito pelo contrário. Por aqui, há o pragmatismo de “limpar” o terreno onde antes havia uma casa dos anos 30 ou 40 para dar lugar a um lucrativo estacionamento. Afinal, o Centro tem se tornado, cada vez mais, uma enorme garagem a céu aberto. Mais espaço para os carros, menos para a convivência.
Há ainda outros pragmatismos adotados de forma ainda mais agressiva. A decisão que exterminou os flamboyants da Avenida Goiás Norte no Setor Urias Magalhães, para a obra do BRT Norte-Sul, é um bom exemplo de como a falta de diálogo e o distanciamento das comunidades podem levar o poder público a encarar fatos graves apenas como “transtornos” que passam para “benefícios” que ficam. Por que não buscar um diálogo maior com a comunidade que sofrerá com o transtorno, para saber até que ponto vale a pena que o benefício chegue daquela forma? Certamente, poderia haver um meio termo entre o que necessitava para fazer a obra caminhar de modo viável e como não agredir de modo tão violento a paisagem e a qualidade de vida com que os moradores da região já tinham se acostumado.
Mas há, no cronograma e no roteiro da mesma obra, algo mais preocupante para ser executado: a passagem das pistas do BRT pelo Centro de Goiânia, mais precisamente o trecho da Avenida Goiás entre a Praça do Trabalhador e a Praça Cívica. O paisagismo desse percurso é um cartão-postal da cidade e sua revitalização foi promovida em tempo relativamente recente, durante a gestão de Pedro Wilson (2001-2004). Mantido o projeto original, a tendência é de que haja algo semelhante ao que ocorreu no infeliz episódio dos flamboyants, só que com consequências mais graves. A preocupação já foi discutida por técnicos e pelo Conselho de Arquitetura e Urbanismo de Goiás (CAU-GO).

Arte urbana na Praça do Bacião: local será um dos 4 pontos do Setor Sul remodelados pelo Casa Fora de Casa | Foto: Divulgação

Canteiros centrais da Avenida Goiás estão sob ameaça: projeto do BRT pode destruir o paisagismo da via | Foto: Divulgação

Fachada na Avenida Goiás tomada por poluição visual: paisagem poderia ser outra com o projeto Cara Limpa |Foto: Divulgação
A solução, porém, pode ser simples: retirar uma das faixas de rolamento dos carros, o que significa, por exemplo, pôr fim ao estacionamento ao longo da via. É sempre uma medida impopular, desgastante e indesejada, especialmente pelos proprietários de casas comerciais e de prestação de serviço na região. No caso do Centro, porém, pode ser positivo o efeito de uma intervenção que favoreça o transporte coletivo sem tirar espaço do pedestre e sem mexer no paisagismo de forma drástica. Um modal como o BRT pode reanimar as pessoas a deixarem o carro em casa para passear na zona central, cuja função, nos últimos tempos, tem sido apenas a de ser ponto de passagem, não de parada. Um ambiente acolhedor, mais humanizado, pode fixar esse transeunte, transformando-o em consumidor.
Uma jogada de mestre seria efetivar o projeto Cara Limpa, que visa retirar banners, luminosos e outros artifícios que escondem as fachadas das edificações do Centro. Para entender o que significa uma paisagem livre de poluições visuais desse tipo, basta um giro pelas ruas de cidades históricas, como Goiás e Pirenópolis: o conforto que a paisagem causa é um dos grandes atrativos para o turismo. Por que não seria, também, no caso de Goiânia, um incentivo ao convívio da população? A pressão de comerciantes, acomodados em visões arcaicas em relação a seus negócios, acrescida da falta de vontade política, ou mesmo de interesse, por parte dos administradores da cidade, faz com que, desde que surgiu a ideia, há mais de 12 anos, ao fim da quarta gestão municipal desde então o Cara Limpa não tenha sido nada além do que foi até agora: um projeto.
Por isso mesmo, uma iniciativa como o Casa Fora de Casa deve ser entendida como uma luz no fim do túnel. É um projeto que vai além de simplesmente buscar a recuperação de áreas verdes da cidade, por três fatores: reposiciona o espaço para os moradores, vizinhos e seus demais usuários; interfere na realidade urbana de forma propositiva; e mostra que há um novo caminho a seguir para a região central, na contramão das tendências atuais de desumanização de sua paisagem.
A partir disso, novas experiências similares podem (e devem) ser replicadas e executadas em outros pontos da cidade. Se o estado de abandono e a falta de equipamentos públicos são problemas que ocorrem na maioria das áreas verdes centrais, a situação é muito mais grave na periferia — justamente onde a vulnerabilidade social tende a ser mais acentuada. Não há erro: existe muito mais chance de se efetivar a redução da violência, da criminalidade e da sensação de insegurança que atormenta a população com a adoção de práticas comunitárias de intervenção urbana do que por meio da combinação simplista de pistolas com algemas.
É a replicação dos preceitos da receita já consagrada da teoria das janelas partidas, dos americanos James Quinn Wilson e George L. Kelling, pela qual um ambiente degradado vai acabar por facilitar e causar mais degradação. Embora seja uma tese contestada por alguns aspectos, não tem como achar — ou há bem menos motivos para isso — que a vida vai melhorar e que o dia será bonito quando o lugar em que a pessoa mora ou trabalha está se desfazendo. Sair de casa para ver ali, fora de casa, uma paisagem agradável faz diferença, assim como também melhora o dia um transporte coletivo mais humanizado e um trânsito menos estressante.
Aos 89 anos, dona Essy poderá ser uma das primeiras a testar o alcance da mudança de um ambiente de uso comum por meio da intervenção da própria comunidade. Quem sabe, outro motivo para refinar, ainda mais, seu bom humor diante da vida.